domingo, 31 de março de 2013

Liberdade de Expressão

Continuando com o "filler" até a chegada das próximas edições dos meus projetos atuais...
Aqui estão 3 resenhas críticas de filmes que assisti recentemente. Fiz elas para a aula de Teoria e Crítica Cinematográfica. Espero que gostem!




Uma visão sobre o não-visual: Resenha do filme Drëznica

Muitas vezes, é da simplicidade que surgem as melhores ideias: foi a partir de um mero questionamento casual que a diretora Anna Azevedo (Rio de Jano, Geral) decidiu embarcar na intensa viagem psicológica registrada no curta documental-experimental Drëznica (2008). “Como é que os cegos sonham?”, perguntava-se a cineasta carioca ao decidir rodar esse pequeno ensaio sobre a natureza da imagem.
Como um barco em alto mar, o filme leva o espectador por uma viagem de inúmeras cores, tons, texturas e saturações em meio a arquivos em vídeo da vida familiar de alguns estranhos, enquanto ouvimos vozes anônimas nos contando sobre suas experiências e pensamentos. Todos os depoimentos vêm de cegos reais, embora nenhuma das imagens pertença à memória de qualquer um deles. Brinca-se com as unidades visuais: planos desconexos se justapõem em sequências significativas; tons de sépia envelhecem as cenas; oscilações na câmera desestabilizam o foco óptico; a fotografia insaturada tira a nitidez das imagens; a natureza quimérica, mnemônica, caótica e nebulosa dos sonhos é transportada para a tela. Mas seria o sonho do cego igual ao daqueles que podem enxergar?
Um comentário em particular explicita a questão-mor da obra: “É preciso redefinir o que é imagem.” O que fala o coração daqueles a quem não chega a luz surpreende aqueles de perspectiva estreita: não é bem ver os objetos o que importa para eles, mas sim enxergar aquilo presente no interior de seu sujeito, o recipiente das experiências oníricas. Pois a própria natureza visual dos sonhos é questionável, uma vez que nossos olhos permanecem fechados durante toda a viagem pelo inconsciente. E o que se observa em um sonho nada mais é do que pura ilusão, um gracejo da nossa imaginação dirigido à nossa percepção racional. Mas se o irreal não se constitui em uma sensação visual verdadeira, o que dizer da ficção? O que dizer do cinema, que não é mais que uma sequência de impressões sobre uma tela branca de momentos já deixados para trás, uma mera imitação dos quadros que nossos olhos registram em nossa mente, muitas vezes encenados até? E o que devemos pensar dos nossos próprios olhos, que nos fazem crer captar naturalmente a realidade, quando na verdade não passam de uma versão orgânica da câmera cinematográfica, tirando 24 fotografias por segundo, editando e projetando em nossos crânios como se fossem salas de exibição?
Em um mundo onde o positivismo se vê cada vez mais desacreditado, e a ideia de uma verdade absoluta é substituída por muitas verdades relativas ou mesmo nenhuma verdade real, um discurso como esse se faz mais e mais importante com o passar do tempo. Em busca do conhecimento, o ser humano agora procura desconstruir o que se estabelece em vez de estruturar outros edifícios psíquicos rígidos; não é mais possível organizar o pensamento através da visão no sentido estreitamente biológico. O que os nossos olhos precisam para enxergar não é de fótons, mas sim de vozes. 



A mãe dos dilemas

A dor por quem partiu e o afeto por quem permanece: existe dilema mais terrível para uma mãe do que ter de escolher entre dois filhos? Pietà (2012), do mesmo diretor de Casa Vazia e Primavera. Verão, Outono, Inverno... E Primavera, o sul-coreano Kim Ki-duk, retrata os conflitos pessoais, sociais e geracionais típicos da Nova Coreia através do triste conto de um monstro que perdeu a vida ao ganhar um coração.
O jovem Lee Kang-do é o fruto do abandono, não só de pais negligentes, mas também de uma sociedade excludente. Em seu trabalho como cobrador de dívidas, desconta suas frustrações em seus alvos, a quem aleija por conta do dinheiro do seguro. Morador de um antigo bairro industrial decadente, prestes a ser esmagado pelos arranha-céus da nova metrópole, Kang-do e suas vítimas vivem como as sobras da sociedade capitalista, aqueles que sentem na pele os horrores do lado mais sujo da moeda. “O início e o fim de todas as coisas. Amor, honra, violência, fúria, ódio, inveja, vingança, morte...” assim define o dinheiro a protagonista feminina Min-soo.
Notável também é o conflito vivido por essa personagem, que se apresenta como a mãe que teria abandonado o pequeno Kang-do à própria sorte 30 anos atrás. Seu dilema é uma alegoria ao conflito vivido pela maioria dos povos do Leste Asiático hoje em dia, em que seus antigos valores entram em choque com aqueles trazidos pela modernidade e a globalização: se apegar à velha tradição ou se agarrar às ideias da nova geração? Min-soo deve decidir entre honrar seu verdadeiro filho, morto indiretamente por causa das ações de Kang-do, ou virar a página e continuar com sua nova vida com o filho que ela adotou sem mesmo perceber para si? No final, é a visão de mundo que prefere olhar apenas para o passado que triunfa, mas não sem algum desgosto.
O filme constrói um discurso interessante e de grande relevância para o contexto global atual; entretanto peca no desenvolvimento de alguns elementos da narrativa. A estética é completamente realística, no entanto a mudança de postura em relação à mulher que supostamente o abandonou quando bebê e à vida em geral pela qual passa Kang-do ocorre rápido demais, soando um tanto forçada. E, embora justificado na maior parte do tempo, há algumas instâncias onde a violência e a sexualidade parecem gratuitas, como a cena em que Min-soo masturba o “filho” adormecido; embora esse evento ajude a explicitar mais o nível e a natureza da frustração sexual sentida por Kang-do, essa atitude não condiz com a caracterização da personagem feminina, pois a mesma demonstra posteriormente repulsa a um contato mais íntimo com o jovem, além de essa atitude não servir bem ao propósito de convencê-lo da afeição maternal da mulher; além disso, se essa cena teve algum propósito de desenvolver a sexualidade da personagem, ela falha pela falta de foco que o filme dá a essa questão ao longo do resto de sua duração.
Por conta dos problemas mencionados, o longa-metragem de Kim Ki-duk deixa uma sensação de incompletude, não sabendo resolver satisfatoriamente todas as questões postas em jogo; contudo, com um pouco de tempo para reflexão, é possível sentir alguma apreciação pelas ideias que podem ser depreendidas e discutidas a partir dessa obra. Mergulhar na cabeça de um homem oriundo de um mundo bem distante do nosso requer tempo e sagacidade; no entanto, tal exercício pode servir de aprendizado não só pelas conclusões tiradas da análise em si, mas dos processos realizados pela conduzi-la. É preciso abrir nossa mente para mudar o cenário a nossa volta.


Vozes de tempos conflitantes

Em meio a um mar de ruídos, gritos e estrondos, nada se escuta. Premiado em vários festivais ao redor do mundo e detentor de status cult dentro do segmento cinéfilo de vanguarda, O Som ao Redor (2012), primeiro longa-metragem de ficção do diretor e crítico de cinema pernambucano Kleber Mendonça Filho, responsável  pelos também consagrados Vinil Verde (2004) e Eletrodoméstica (2005), desnuda o cotidiano da nova classe média de sua terra natal, revelando suas aspirações, contradições e fantasmas. Trabalhando com novos temas ao mesmo tempo em que discorre sutilmente sobre antigos problemas, Mendonça faz um retrato cínico da chegada da Era da Informação a uma terra aristocrática e tradicionalista.
A insegurança ronda o bairro onde residem os protagonistas desta história: tanto em relação a sua integridade física, quanto à psicológica. Enquanto lidam com a criminalidade resultante dos problemas históricos e antropológicos de sua cidade, esses moradores da Zona Sul de Recife se indagam silenciosamente sobre a natureza de seu estilo de vida; seria esse sonho concretizado de ascensão social aquilo que eles realmente queriam ou precisavam? A evidente frustração da dona-de-casa Bia, que fuma maconha para esquecer os problemas domésticos e que, apesar de casada, precisa se masturbar para se satisfazer sexualmente, ilustra bem a decepção – consciente ou não – de uma parcela dessa nova classe emergente com sua condição atual, em que o conforto e comodidade não são capazes de preencher o vazio deixado pela precariedade das relações pessoais e a desumanização da paisagem urbana, temas já retratados pelo diretor no mocumentário Recife Frio (2009).
Também figuram as contradições resultantes entre o espaço novo e a velha mentalidade: ainda que surjam novas tecnologias e novos parâmetros de vida doméstica, social e profissional, prevalecem as mesmas crenças e estruturas sociais de séculos atrás – com o dono do condomínio mandando e desmandando na vizinhança tal qual um coronel da Antiga República, agindo como um poder paralelo ao Estado. Superstições de mau agouro, inaptidão em operar aparelhos eletrônicos e capatazes convivem com crianças aprendendo chinês e editando vídeos em laptops, num choque de forças temporais que põem em cheque a natureza modernizadora do processo globalizante. A situação em que se encontram os moradores da vizinhança abastada, contratando uma milícia particular para protegê-los dos “marginais”, nada mais é do que reflexo da informalidade e condescendência enraizadas em nossa cultura.
O passado volta para se vingar quando questões arcaicas como disputas por terras, marginalização das classes populares, colonização aventureira e autoritarismo elitista levam os “fracassados” da sociedade a se revoltar contra seus desafetos mais bem sucedidos, às vezes com perspectiva reformista – como é, em certo sentido, o caso do “segurança particular” Clodoaldo com o fazendeiro e proprietário de imóveis, Francisco, o homem que matou seu pai – às vezes, apenas almejando se integrar ao sistema – tal qual deseja o garoto pobre que arromba as casas do bairro de classe média. O histórico conturbado do Brasil também se faz presente nas atitudes daqueles com mais sorte na vida: o neto do “coronel” faz besteira para aparecer e se sente justificado pela influência que o avô tem nas redondezas. Muda-se o cenário da história, permanecem os mesmos personagens e clichês.
A relevância das temáticas postas em jogo por esse filme, assim como pelo resto da cinematografia – e pelas atitudes – de seu realizador é tanta para discutirmos a realidade do nosso país, seja em Pernambuco, Brasília ou São Paulo, e, por extensão, a do restante do mundo globalizado, que não chega a ser uma surpresa o tamanho da repercussão que ele teve, a despeito do fracasso de público, motivado pela oposição de certos grupos de poder e o compromisso inconsciente do povo com o mesmo. Muito bem-vindo é o advento de tal iniciativa, em um momento em que é forte a discussão sobre o desenvolvimento do país, a descentralização regional e a ascensão das classes C e D, tanto para expor o novo quadro social brasileiro, em seus anseios otimistas, quanto para desconstruí-lo e denunciar as mazelas de uma organização hierárquica que muito muda de forma, mas pouco se altera em conteúdo.


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