Aqui estão 3 resenhas críticas de filmes que assisti recentemente. Fiz elas para a aula de Teoria e Crítica Cinematográfica. Espero que gostem!
Uma visão sobre o não-visual: Resenha do filme Drëznica
Muitas vezes, é da simplicidade que surgem as melhores ideias: foi a
partir de um mero questionamento casual que a diretora Anna Azevedo (Rio de Jano, Geral) decidiu embarcar na intensa viagem psicológica registrada no
curta documental-experimental Drëznica
(2008). “Como é que os cegos sonham?”,
perguntava-se a cineasta carioca ao decidir rodar esse pequeno ensaio sobre a
natureza da imagem.
Como um barco em alto mar, o filme leva o espectador por uma viagem de
inúmeras cores, tons, texturas e saturações em meio a arquivos em vídeo da vida
familiar de alguns estranhos, enquanto ouvimos vozes anônimas nos contando
sobre suas experiências e pensamentos. Todos os depoimentos vêm de cegos reais,
embora nenhuma das imagens pertença à memória de qualquer um deles. Brinca-se
com as unidades visuais: planos desconexos se justapõem em sequências
significativas; tons de sépia envelhecem as cenas; oscilações na câmera
desestabilizam o foco óptico; a fotografia insaturada tira a nitidez das
imagens; a natureza quimérica, mnemônica, caótica e nebulosa dos sonhos é
transportada para a tela. Mas seria o sonho do cego igual ao daqueles que podem
enxergar?
Um comentário em particular explicita a questão-mor da obra: “É preciso redefinir o que é imagem.” O
que fala o coração daqueles a quem não chega a luz surpreende aqueles de
perspectiva estreita: não é bem ver os objetos o que importa para eles, mas sim
enxergar aquilo presente no interior de seu sujeito, o recipiente das
experiências oníricas. Pois a própria natureza visual dos sonhos é
questionável, uma vez que nossos olhos permanecem fechados durante toda a
viagem pelo inconsciente. E o que se observa em um sonho nada mais é do que
pura ilusão, um gracejo da nossa imaginação dirigido à nossa percepção
racional. Mas se o irreal não se constitui em uma sensação visual verdadeira, o
que dizer da ficção? O que dizer do cinema, que não é mais que uma sequência de
impressões sobre uma tela branca de momentos já deixados para trás, uma mera
imitação dos quadros que nossos olhos registram em nossa mente, muitas vezes
encenados até? E o que devemos pensar dos nossos próprios olhos, que nos fazem
crer captar naturalmente a realidade, quando na verdade não passam de uma
versão orgânica da câmera cinematográfica, tirando 24 fotografias por segundo,
editando e projetando em nossos crânios como se fossem salas de exibição?
Em um mundo onde o positivismo se vê cada vez mais desacreditado, e a
ideia de uma verdade absoluta é substituída por muitas verdades relativas ou
mesmo nenhuma verdade real, um discurso como esse se faz mais e mais importante
com o passar do tempo. Em busca do conhecimento, o ser humano agora procura
desconstruir o que se estabelece em vez de estruturar outros edifícios
psíquicos rígidos; não é mais possível organizar o pensamento através da visão
no sentido estreitamente biológico. O que os nossos olhos precisam para
enxergar não é de fótons, mas sim de vozes.
A mãe dos dilemas
A dor por quem partiu e o afeto
por quem permanece: existe dilema mais terrível para uma mãe do que ter de
escolher entre dois filhos? Pietà
(2012), do mesmo diretor de Casa Vazia e
Primavera. Verão, Outono, Inverno... E
Primavera, o sul-coreano Kim Ki-duk, retrata os conflitos pessoais, sociais
e geracionais típicos da Nova Coreia através do triste conto de um monstro que
perdeu a vida ao ganhar um coração.
O jovem Lee Kang-do é o fruto do
abandono, não só de pais negligentes, mas também de uma sociedade excludente.
Em seu trabalho como cobrador de dívidas, desconta suas frustrações em seus
alvos, a quem aleija por conta do dinheiro do seguro. Morador de um antigo
bairro industrial decadente, prestes a ser esmagado pelos arranha-céus da nova
metrópole, Kang-do e suas vítimas vivem como as sobras da sociedade capitalista,
aqueles que sentem na pele os horrores do lado mais sujo da moeda. “O início e
o fim de todas as coisas. Amor, honra, violência, fúria, ódio, inveja,
vingança, morte...” assim define o dinheiro a protagonista feminina Min-soo.
Notável também é o conflito
vivido por essa personagem, que se apresenta como a mãe que teria abandonado o
pequeno Kang-do à própria sorte 30 anos atrás. Seu dilema é uma alegoria ao
conflito vivido pela maioria dos povos do Leste Asiático hoje em dia, em que
seus antigos valores entram em choque com aqueles trazidos pela modernidade e a
globalização: se apegar à velha tradição ou se agarrar às ideias da nova
geração? Min-soo deve decidir entre honrar seu verdadeiro filho, morto
indiretamente por causa das ações de Kang-do, ou virar a página e continuar com
sua nova vida com o filho que ela adotou sem mesmo perceber para si? No final,
é a visão de mundo que prefere olhar apenas para o passado que triunfa, mas não
sem algum desgosto.
O filme constrói um discurso
interessante e de grande relevância para o contexto global atual; entretanto
peca no desenvolvimento de alguns elementos da narrativa. A estética é
completamente realística, no entanto a mudança de postura em relação à mulher
que supostamente o abandonou quando bebê e à vida em geral pela qual passa
Kang-do ocorre rápido demais, soando um tanto forçada. E, embora justificado na
maior parte do tempo, há algumas instâncias onde a violência e a sexualidade
parecem gratuitas, como a cena em que Min-soo masturba o “filho” adormecido; embora
esse evento ajude a explicitar mais o nível e a natureza da frustração sexual
sentida por Kang-do, essa atitude não condiz com a caracterização da personagem
feminina, pois a mesma demonstra posteriormente repulsa a um contato mais
íntimo com o jovem, além de essa atitude não servir bem ao propósito de
convencê-lo da afeição maternal da mulher; além disso, se essa cena teve algum
propósito de desenvolver a sexualidade da personagem, ela falha pela falta de
foco que o filme dá a essa questão ao longo do resto de sua duração.
Por conta dos problemas
mencionados, o longa-metragem de Kim Ki-duk deixa uma sensação de incompletude,
não sabendo resolver satisfatoriamente todas as questões postas em jogo;
contudo, com um pouco de tempo para reflexão, é possível sentir alguma
apreciação pelas ideias que podem ser depreendidas e discutidas a partir dessa
obra. Mergulhar na cabeça de um homem oriundo de um mundo bem distante do nosso
requer tempo e sagacidade; no entanto, tal exercício pode servir de aprendizado
não só pelas conclusões tiradas da análise em si, mas dos processos realizados
pela conduzi-la. É preciso abrir nossa mente para mudar o cenário a nossa
volta.
Vozes de tempos conflitantes
Em meio a um mar de ruídos,
gritos e estrondos, nada se escuta. Premiado em vários festivais ao redor do
mundo e detentor de status cult dentro do segmento cinéfilo de vanguarda, O Som ao Redor (2012), primeiro longa-metragem de ficção do
diretor e crítico de cinema pernambucano Kleber Mendonça Filho, responsável pelos também consagrados Vinil Verde (2004) e Eletrodoméstica
(2005), desnuda o cotidiano da nova classe média de sua terra natal, revelando
suas aspirações, contradições e fantasmas. Trabalhando com novos temas ao mesmo
tempo em que discorre sutilmente sobre antigos problemas, Mendonça faz um
retrato cínico da chegada da Era da Informação a uma terra aristocrática e tradicionalista.
A insegurança ronda o bairro
onde residem os protagonistas desta história: tanto em relação a sua
integridade física, quanto à psicológica. Enquanto lidam com a criminalidade
resultante dos problemas históricos e antropológicos de sua cidade, esses
moradores da Zona Sul de Recife se indagam silenciosamente sobre a natureza de
seu estilo de vida; seria esse sonho concretizado de ascensão social aquilo que
eles realmente queriam ou precisavam? A evidente frustração da dona-de-casa
Bia, que fuma maconha para esquecer os problemas domésticos e que, apesar de
casada, precisa se masturbar para se satisfazer sexualmente, ilustra bem a
decepção – consciente ou não – de uma parcela dessa nova classe emergente com
sua condição atual, em que o conforto e comodidade não são capazes de preencher
o vazio deixado pela precariedade das relações pessoais e a desumanização da
paisagem urbana, temas já retratados pelo diretor no mocumentário Recife Frio (2009).
Também figuram as contradições
resultantes entre o espaço novo e a velha mentalidade: ainda que surjam novas
tecnologias e novos parâmetros de vida doméstica, social e profissional,
prevalecem as mesmas crenças e estruturas sociais de séculos atrás – com o dono
do condomínio mandando e desmandando na vizinhança tal qual um coronel da
Antiga República, agindo como um poder paralelo ao Estado. Superstições de mau
agouro, inaptidão em operar aparelhos eletrônicos e capatazes convivem com
crianças aprendendo chinês e editando vídeos em laptops, num choque de forças
temporais que põem em cheque a natureza modernizadora do processo globalizante.
A situação em que se encontram os moradores da vizinhança abastada, contratando
uma milícia particular para protegê-los dos “marginais”, nada mais é do que
reflexo da informalidade e condescendência enraizadas em nossa cultura.
O passado volta para se vingar
quando questões arcaicas como disputas por terras, marginalização das classes
populares, colonização aventureira e autoritarismo elitista levam os
“fracassados” da sociedade a se revoltar contra seus desafetos mais bem
sucedidos, às vezes com perspectiva reformista – como é, em certo sentido, o
caso do “segurança particular” Clodoaldo com o fazendeiro e proprietário de
imóveis, Francisco, o homem que matou seu pai – às vezes, apenas almejando se
integrar ao sistema – tal qual deseja o garoto pobre que arromba as casas do
bairro de classe média. O histórico conturbado do Brasil também se faz presente
nas atitudes daqueles com mais sorte na vida: o neto do “coronel” faz besteira
para aparecer e se sente justificado pela influência que o avô tem nas
redondezas. Muda-se o cenário da história, permanecem os mesmos personagens e
clichês.
A relevância das temáticas
postas em jogo por esse filme, assim como pelo resto da cinematografia – e
pelas atitudes – de seu realizador é tanta para discutirmos a realidade do
nosso país, seja em Pernambuco, Brasília ou São Paulo, e, por extensão, a do
restante do mundo globalizado, que não chega a ser uma surpresa o tamanho da
repercussão que ele teve, a despeito do fracasso de público, motivado pela
oposição de certos grupos de poder e o compromisso inconsciente do povo com o
mesmo. Muito bem-vindo é o advento de tal iniciativa, em um momento em que é
forte a discussão sobre o desenvolvimento do país, a descentralização regional
e a ascensão das classes C e D, tanto para expor o novo quadro social
brasileiro, em seus anseios otimistas, quanto para desconstruí-lo e denunciar
as mazelas de uma organização hierárquica que muito muda de forma, mas pouco se
altera em conteúdo.
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